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24
Jan18

O nosso "Carlos"

Aurora Madaleno

O nosso “Carlos”

A minha madrinha do baptismo era a maior amiga da minha Mãe. Chamavam-lhe Maria Teresa, mas o seu nome era Maria Martins como a minha Mãe. O meu padrinho chamava-se Joaquim Mendes Terezo.

Pois a minha Madrinha tinha a casa no Povo e passava a maior parte do tempo no Lameirão. Lá tinha tudo o que precisava: colheitas, uma grande corte, porcos, ovelhas, cabras, burros, vacas, cães, gatos, eu sei lá que mais! O meu Padrinho tinha um rebanho grande que ele próprio guardava, ou o filho Manuel, no inverno agasalhado com os safões, a manta do pastor e um capote de abas em palha. No verão, eu cheguei a ver o bardo onde se recolhia o rebanho com os cães. Eu e as filhas da minha Madrinha estávamos deitadas cá fora, porque era mais fresco do que dentro da corte, mas eu, sem sono e a contar as estrelas do céu estrelado. As estrelas faziam feitios e corriam no céu. Era lindo e divertido. Poucas vezes eu fiquei no Lameirão: uma ou duas vezes, creio. De uma lembro-me que a minha Madrinha levava um burro e uma burra carregada. A Chachão é que via a Madrinha passar com os burros na rua em direcção à Capela e, se lhe perguntasse “queres vir para o Lameirão?”, dizia logo que sim. Não sei se ela ia a cavalo no burro ou a pé; com certeza que a minha Madrinha a punha a cavalo para não se cansar, porque o Lameirão ainda era longe do Povo.

A propósito, não me lembro se, quando eu era pequena, tínhamos algum burro; mas, no tempo em que o meu Pai ia vender as mantas aos Povos vizinhos, carregava-as no burro. Esse burro, que foi mesmo o último que conheci a sério, chamava-se “Carlos”. Não sei quem lhe pôs o nome. Talvez tivessem sido o meu Pai e o Tó Farruco a “baptizá-lo” com esse nome, por uma brincadeira qualquer. Eles gostavam da galhofa: passavam horas na chalaça ou na conversa e a contar histórias dos fojeiros e dos quadrazenhos, do Ti Zé Lavai ou do Ti Lázaro. Ora um se lembrava e contava, ora era o outro que se saía com mais uma para se rirem e fazerem rir. Em noites quentes, juntavam-se os vizinhos na escaleira da Ti Bina ou do Ti António Coxo ou do Ti Tó Campinhas. Nas tardes quentes, à hora da sesta, juntavam-se à sombra do Torreão. Era o convívio de vizinhança da mesma rua e de outras que gostavam de se juntar ali para a conversa.

Em Vale de Espinho era assim: quem desse a volta ao Povo numa noite de verão encontrava gente ao luar a tomar a fresquidão e a conviver em grupo na Fonte grande, no chafariz das Eiras, ao almo do campanário, à porta do curral do Ti Zé Polho, à porta do Ti Zé sacristão, à Capela, ao Cabecinho, ao cimo das Eiras, ao Porto, à rua Nova, ao Rossio ou ao forno do Senhor, na escaleira do Ti Zé Nenico, à porta da Ti Catalina, eu sei lá que mais. O Povo era grande e todas as pessoas, depois da ceia, vinham para fora apanhar o ar da noite. É que Vale de Espinho fica na margem direita do Côa e a sul sobe-se para o Vale da Maria e Malcata a caminho de Penamacor e a norte sobe-se para o Soito e para o Lameirão. É uma terra fria no inverno e muito quente no verão. Se era tempo de desfolhada, juntavam-se a degranar o feijão ou o milho. Era uma festa: cantavam, riam, e o trabalho fazia-se com essa facilidade toda.

Pois o nosso burro era branco e preto, meio cinzento com manchas brancas. Todos achavam imensa graça ao nome e ao burro. O meu Pai levava-o ao Vale da Maria para transportar lenha ou qualquer outra coisa e ia com ele a Alfaiates, Aldeia do Bispo, Aldeia da Ponte, Soito e outros Povos vizinhos a vender mantas da fábrica do Compadre Artur Freire. Era engraçado o nosso “Carlos” e uma companhia que havia lá na casa de Vale de Espinho. Quando zurrava, nós já sabíamos que era o nosso “Carlos” e não outro qualquer ali da rua. Já lhe conhecíamos o zurrar.

Não sei ao certo porque zurram os burros. Talvez para se manifestarem quando se encontram uns com os outros, ou para chamarem a atenção dos donos!

 

MADALENO, Aurora Martins, Textos Soltos, 2011

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