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06
Ago12

Memórias do Bravo

Aurora Madaleno

MEMÓRIAS

 

 

Quando se chega aos 62 anos, já se é velho, mesmo que sintamos como que o entusiasmo da juventude para novos desafios. E temos que saber viver com isso. Olhamos para trás, procurando lembrar-nos de momentos que vivemos, de caminhos que palmilhámos e de pessoas que conhecemos e de quem gostámos.

Uma boa ajuda a esses frequentes exercícios de memória são as fotografias que guardámos. Daí que eu fosse aos meus álbuns da primeira gaveta rebuscar umas quantas do tempo em que leccionei na Escola Primária Oficial do Bravo, para satisfazer o pedido da Direcção da Associação Arcanjo S. Rafael.

Encontrei lembranças das minhas Colegas e dos meus Alunos, de arcos e figurantes simpáticos do rancho que ensaiámos para um cortejo a favor do Hospital da Sertã. E comecei a cantarolar:

"Somos do Bravo que é nossa terra..."

E outra:

"Somos varinas vamos prò mar

Buscar sardinhas que a maré vai boa

O nosso rancho vem a chegar

Alegremente sempre a cantar

 

Vamos prà frente

Ai Jesus tanto calor

Viva quem anda dançar

Nos braços do seu amor (bis)"

 

Foram bons tempos aqueles quatro anos, de 1962 a 1966, em que vivi com as gentes do Bravo.

Fui sempre muito bem recebida e estimada por todos.

Sem grande esforço de memória recordo os Senhores que tinham o comércio e o telefone próximo da escola, a Costureira Maria Helena, muito nova ainda mas competente, que fez algumas das minhas roupas, a Senhora D. Amélia do Vilar que tantos gestos de amizade teve para comigo até nos deixar, a Senhora D. Celeste da Arrochela, os Senhores da Moagem, os Senhores de Vale de Couro, os Senhores da Póvoa d'Alegria, o Senhor Januário, o Senhor Daniel, avô de duas meninas que nunca faltavam à escola e do menino Ramiro que levei à pia baptismal, a Senhora Emília que tratava da nossa casa e das nossas roupas e fazia o pão e o leite, para as crianças da escola que quisessem, tomarem quentinho, numa sala emprestada que preparámos para o efeito ali próxima da janela do meu quarto. Enfim, lembro-me de muitas pessoas e situações, de famílias que visitei, de casamentos a que assisti e dos passeios ao rio.

Na capela fazia-se uma festa muito bonita em honra de São Rafael. Havia procissão, leilões e quermesse. Nalgumas épocas do ano, rezávamos o terço. Quem se lembra? O altar era bonito e estava sempre muito bem cuidado. Cheguei a bordar uma toalha com espigas e uvas para esse altar.

O Senhor Padre Serafim já não era novo, mas vinha celebrar algumas missas na Capela de São Rafael. Colaborou connosco, muito simpaticamente, na ligação à Cáritas que nos mandava sacas com leite e farinha e latas com queijo para as crianças. Um dos filhos dos Senhores da Póvoa d'Alegria fazia o favor de as ir buscar no carro de bois a Pedrógão Pequeno. Não era fácil conseguir-se outro meio de transporte.

Naquele tempo, a estrada não estava alcatroada. Era poeira, no verão, e lama, no inverno. Os táxis nem sempre podiam ir de Pedrógão ao Bravo. Por vezes, iam a meio do caminho. Autocarros nem pensar! Eu tinha umas botas de cano alto para o caminho. No fim mudava de calçado. As botas levavam um banho antes de irem para o saco. Ia apanhar o autocarro para a Sertã ou para Figueiró dos Vinhos ou à missa na Igreja Matriz de Pedrógão Pequeno. Pelo caminho não tinha medo. Ninguém fazia mal. As poucas casas que encontrava (em três sítios, segundo recordo) já eram conhecidas e como que metas de cada etapa da caminhada. Era mais agradável ir com companhia, conversando ou cantarolando.

Hoje, tudo está diferente. Os locais foram transformados à custa do progresso. As pessoas partiram. Há novos centros de interesse, novas gentes, novos costumes. Será que ainda existe a escola que eu conheci novinha?

Tinha duas salas de aula, vidros lavados e estores interiores castanhos de esteira, sanitários e jardim com muro baixo e branquinho onde, de onde em onde, colocávamos panelas de ferro a que as famílias já não davam utilidade. As sardinheiras cresciam nelas e enfeitavam a escola.

Tínhamos orgulho na nossa escola e aprendíamos a cuidar dela logo de pequeninos.

O Jardim foi feito e era regado e cuidado por nós e pelas crianças. Tinha várias plantas que iam trazendo, plantando e regando. Ali brincávamos com jogos tradicionais: andar e cantar à roda, as escondidas, a cabra-cega, o encadeado, o lencinho, o anel, saltar a corda, pontapés na bola ou bola de mão em mão e a saltar o eixo. Eram as brincadeiras nos intervalos das outras aulas. Ninguém educa uma criança se não a ensina a brincar.

Ali tirámos algumas fotografias que vos mando. Talvez as caritas que sorriem entre as batas brancas sejam vossas conhecidas ou sejais vós mesmos que, hoje, tendes outro penteado.

Naquela escola muito se aprendia. Havia livros únicos e programas a cumprir. Era obrigatório saber a tabuada e escrever sem erros. Mas tudo era matéria de interesse. Até tínhamos aulas de declamação, teatro e canto. A Maria Alice tinha muito jeito para declamar e decorava com muita facilidade os poemas que queria dizer. Aos domingos, utilizávamos a sala para reuniões de pais e de jovens. No Natal fazíamos o Presépio.

Lembro-me das visitas de dois inspectores à escola. Não sei porquê, naquele tempo apareciam frequentemente inspectores nas escolas onde leccionei. Vinham sem avisar, assistiam a uma aula, viam os livros, assinavam e datavam a sua presença. Não faziam grandes comentários, mas falavam com as crianças. Despediam-se com ar importante e educadamente. Um desses inspectores voltei a encontrá-lo, mais tarde, no Ministério da Educação. Era um grande amigo do meu irmão, Inspector Madaleno. Já ambos faleceram.

O tempo voa e deixa os seus sinais. Eu deixo-vos estas minhas memórias da escola do Bravo. Alguns de vós ides completá-las com outros pormenores que escrevereis em "Notícias de Cá". Fico à espera.

 

O meu abraço amigo

Aurora Madaleno

 

(In: Notícias de Cá, Associação Arcanjo S. Rafael, 2002)

 

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